Tentei assinar minha carta de demissão com aquela caneta BIC, mas a tinta acabou no meio do meu primeiro sobrenome. Talvez tenha sido um sinal. Repensei meus anos ali naquele restaurante, o batalhão de cozinheiros sob meu comando, o stress diário no almoço e no jantar. Valeu a pena cada segundo, mas agora chega. Preciso cuidar da minha saúde física e mental. E sentimental.
Aos 43 anos, solteiro e sem dívidas, meu patrimônio é minha moto Vespa 1985, meus livros e discos de vinil. Tá ótimo quando me comparo com a maioria dos ursos, mas poderia estar em situação melhor. Tenho um encontro hoje e preciso comprar flores pra ela. Conheci a incauta na academia. Esperança zero de que vamos engatar um relacionamento mais sério. Mas é melhor do que ficar em casa assistindo "Last of Us", apesar de todo o burburinho sobre a segunda temporada. Esse tal de Pascal é um cigano Igor falando inglês.
Por via das dúvidas, deixei minha cama arrumada, lençóis trocados, toalhas do banheiro limpas, fiz uma faxina rápida no vaso e partes mais sujas, joguei fora o lixo, a pilha de jornais que insisto em assinar e não ler, e troquei a água do Oswaldo. Tomara que ele se comporte e goste dela, mas jabutis costumam não ir com a cara de pessoas estranhas logo no primeiro encontro. E se eu comprar de ração aquela graminha japonesa que brilhou seus olhos na pet shop? Hos se sentirá prestigiado e perceberá a ocasião especial. Qual é mesmo o QI das tartarugas?!
Foto: Carmen Coimbra (flickr)
Quem sabe tenho uma revelação essa noite e encontre finalmente minha cara metade?! Será que ela gosta de punk rock?! Se me ver bebendo cerveja e campari, vai achar que sou alcoólatra?! Ou é daquelas certinhas, punheta com tudo, tem mania de limpeza, nunca leu os clássicos, acha Kubrick um porre e Wes Anderson o melhor diretor de todos os tempos? A ver. Até chegar na sobremesa farei um interrogatório completo cobrindo pelo menos 80% desses assuntos. Será que conhece Berlin?! Se não bater o santo dela com o meu e não der liga, já elvis.
As chances de dar merda são grandes, posso pressentir. Como amanhã é domingo e o astro rei dará o ar de sua escaldante graça, posso dar um pulo naquele pesque-pague aqui perto. Ganhei uma vara de pescar novinha no meu aniversário de 40 anos e nunca usei. Quem foi o canalha que me deu isso? Ah, me lembrei. Foi aquele Animal que se mandou pro México e nunca mais voltou. Trouxe de lá, é importada, cheia de parangolés, mas como faço pra usá-la. Alguém no local haverá de me explicar, vender iscas e até mesmo fazer companhia neste hobbie pra lá de monótono.
Em todo caso, se sair sem peixes posso passar na casa da minha tia, almoçar aquela lasanha magnífica e comer de sobremesa a famosa torta de banana com suspiro, minha preferida. Nem sei se ela estará por lá, mas farei uma ligação assuntando o programa do dia. Vou saudar nossas famílias, agradecer pela convivência rica, prometer levar cerveja, Heineken sim, Glacial não, e talvez algo quente de digestivo. Perguntarei como estão os primos, se mais alguém vem enquanto torço pra ela estar em casa e não batendo perna pela cidade. Adora um tumulto.
Às vezes, um desencontro pode transformar seu domingo no melhor dia da sua Vida.
Será que cancelo com ela?!
Exercício: Escrever um relato em primeira pessoa fazendo uso das seguintes palavras, nesta ordem: caneta, flores, cama, revelação, vara de pescar e saudar.
"Gênio Kabral, que com uma caneta descreve flores da vida sem sequer se levantar da cama, numa revelação simples do que uma vara de pescar pode lhe fazer saudar os tempos em que pescava no açude do arraiá onde passava suas férias de infância!!"
Tiago Sales
: ))