kartnerstraße, maio de 2007 (arquivo pessoal)
daqui menos de três meses, no dia sete de junho pra ser exato, completarei vinte anos no velho mundo, tendo vivido em viena quase dois, outros nove em düsseldorf, e depois quase mais dez a serem completados em setembro de volta a ex-capital do império habsburgo onde sissi, a imperatriz, mandava mais do que seu marido, o francisco josé, conhecido também como franz joseph por essas bandas, o mesmo que perdeu o filho franz ferdinand, nome daquela banda que nem se existe mais, morto em sarajevo por um partisan sérvio de nome prilep após tentativa frustrada de atentado numa ponte, desencadeando o que seria a primeira guerra mundial, a grande guerra para acabar com todas as guerras, um imenso fiasco, carnificina como nunca antes vista, cuja sequência conseguiu ser pior na segunda grande guerra feita por uns poucos afetando a vida de milhões durante gerações, bando de desgraçados esses senhores do mundo, vaidosos, cruéis, sem compaixão, mas não sei por que comecei a falar em déspotas e em disputas sanguinárias sem sentido, pois o assunto desse fluxo de consciência que escrevo sentado no liu liu, simpático asiático no décimo nono distrito vienense, pra quem não sabe, viena é dividida em vinte e três distritos sendo o primeiro onde a cidade começou lá na época dos romanos chamada de vindobona com fortificações e acampamentos parecidos com aqueles do asterix e obelix como petibonum, etc. e tal, é o centro da cidade onde está a belíssima catedral de são estevão, com uma torre inteira e a outra pela metade, uma lenda diz que o mestre de obras e chefe da construção estava atrasado para entregar a catedral e fez um pacto com o diabo pra acelerar as coisas, sob a condição que ele jamais deveria pronunciar o nome ana, ou seria maria?, nomes comuns à época, acontece que num fim de tarde já cansado, pensando apenas em tomar um glühwein, pois era inverno e os mercadinhos de natal estavam ali, na sua frente, sendo montados, o tal mestre avistou maria, ou seria ana?, moça por quem era apaixonado, e lá de cima gritou seu nome vindo imediatamente a despencar de um andaime espatifando no chão feito um cocô de pomba morrendo que nem um passarinho e deixando a torre pela metade, torre esta que hoje possui um elevador dando acesso a bela vista de todo o primeiro distrito dessa cidade mágica, projetada para acomodar dois milhões e trezentas mil almas, de preferência austríacas, auge da população na época de sissi e franz joseph, mas que hoje possui menos de dois milhões e cresce a olhos vistos, pois há muitas gruas espalhadas pela cidade de poucos arranha-céus que rivalizam em altura, mas não em importância, com a própria torre da catedral, e com a famosa roda gigante do prater e suas cabines de madeira vermelha construída em 1900 e guaraná com rolha, a mais antiga do mundo ali no maior parque da cidade, aliás viena tem quarenta e seis porcento de sua área coberta por parques, praças e florestas fazendo dela a capital mais verde da europa, quicá do mundo, e quando cheguei não me chamou tanta a atenção assim, exceção feita ao prater onde ia correr nos finais de semana quando morava no gasometer, antigo gasômetro da cidade transformado em residências estudantis, salas comerciais e um shopping center que até cinema e bilhar tinha, onde assisti a poucos filmes e joguei algumas partidas com meus colegas de doutorado, hoje amigos e irmãos da Vida, companheiros de gandaias homéricas, viagens inesquecíveis e parcerias nos estudos na tu wien, a universidade técnica da cidade que me trouxe pra cá e sua pequena trupe de argentinos me proporcionando a chance única de aprender espanhol, ou portunhol, de graça, oportunidade que abracei com gosto, muitas vezes ao som de rock e punk rock no chelsea regado a muita tequila, essencial para aguçar minha percepção sensorial tornando o aprendizado mais fácil, já que sob efeito de álcool somos capazes de falar javanês fluente, conversar com mesas e cadeiras e até mesmo trocar ideias com bancos de metrô lá pelas tantas horas da matina voltando pra casa, batendo entre um ponto final e outro no metrô da linha u3 que começava (ou terminava) em ottakring, onde fica a cervejaria de mesmo nome, até simmering, já no décimo primeiro distrito onde fica o gasometer, e se acordássemos ali por perto era sorte grande, pois bastava esperar o comboio chegar ao destino pulando do vagão na bendita estação, ou descer onde dava, tomar o trem voltando na direção contrária até chegar em casa, de onde descíamos feito cachorro quando cai do caminhão de mudança, tateando o piso, subindo as escadas rolantes, olhando para o supermercado fechado nas primeiras horas do domingo, a neve caindo no teto de vidro, aqueles tijolinhos marrons dando a sensação de morar num forno gigante, até girar a chave, bater a porta, rastejar até o quarto da república sem fazer muito alarde pra não acordar os outros, pegar um copo d’água essencial pra sobrevivência, tirar o casaco e a roupa cheirando a cigarro dos outros e desmaiar na cama até umas três ou quatro da tarde acordando com a boca colada, aquele sabor de cabo de guarda chuva eliminados somente após beber uma coca cola, esquentar a bendita lasanha congelada do hofer, o supermercado, e devorá-la em segundos arrematando com um resto de sorvete de alguém perdido no congelador, olhar pela janela e perceber ter jogado mais um domingo no lixo sem ter estudado o que deveria, mas tendo criado histórias e memórias inesquecíveis na noite anterior que fortaleceram a amizade com os hermanos firme até hoje, apesar de um estar em sevilla, o outro em colônia, o casal em graz e meu grande mestre e guru das confusões ter voltado ao brasil e se arrepender todos os dias, ele que me buscou no aeroporto no longíncuo sete de junho de dois mil e quatro de onde saímos proseando até a estação de trem da linha s7 e pegamos o comboio para o lado errado, contrário à cidade, que nos levaria até bratislava, capital da eslováquia e vizinha a viena, se não tivéssemos percebido a abundância de pastos e plantações e a ausência de casas, prédios, carros e pessoas na medida em que nos afastávamos, quando acabamos descendo numa estação e pegando a direção certa até a central, depois o metrô até o gasometer onde cheguei cansado, mas já quis sair pra fazer um passeio de reconhecimento na cidade que havia visitado sete meses antes, vindo de berlin após seis semanas na tu local onde conheci meu já citado tutor e guru, o doido que me ofereceu a vaga de doutorado numa boate de metaleiros comedores de barata ao som de nirvana no último, quando aceitei prontamente perguntando onde deveria assinar, ato marcante mudando para sempre minha vida e destino, e justamente por isso resolvi iniciar o giro do primeiro dia comecando pela stephansdom onde acendi uma vela agradecendo por estar ali iniciando uma nova fase da Vida, de lá passei num salão de chá atrás dela pegando depois a kartnerstraße em direção a staatsoper, a famosa ópera de viena com espetáculos custando entre dois e trezentos euros, compre na bilheteria à esquerda olhando de frente para a entrada, basta chegar meia hora antes do espetáculo comecar, não se preocupe com a chusma de chineses ávidos por beber cultura na fonte, eles tem grana e você não, logo atrás dela tem o hotel sacher que dizem ser o criador da famosa sacher torte, presente em onze entre dez cafés da cidade, onde os mesmos chineses fazem fila na porta antes da ópera começar, mas há quem diga que a torta foi criada na concorrente, a konditorei demel, disputa que nunca chegará ao fim servindo para alimentar a lenda e a mística sobre a doce iguaria numa jogada de marketing sutil fazendo com que os turistas sejam obrigados a provar a bendita guloseima, a preferida da sissi já que o franz joseph gostava mesmo era de kaiserschmarnn, que tem kaiser no nome não é por acaso, e saindo do hotel pensando na torta segui pelo quarteirão virando à direita onde dei de cara com o albertina e a augustinerkirche, localizados numa praca bacana que se extende pelas ruelas da cidade antiga até a michaelplatz com suas ruínas romanas numa praca em frente a entrada do hofburg, o complexo de residências dos habsburgo cujo interior pode ser visitado, mas até hoje não entrei pois o ingresso é caro e posso ir quando quiser já que moro aqui e acabo não indo nunca, mas sei que dentro tem uma biblioteca valendo o ingresso e o museu da sissi fica logo ali também pra matar a vontade dos admiradores da imperatriz mais carismática do império e fã ardorosa dos cavalos da raça lippizzaner, astros da escola de equitação espanhola cujos estábulos também estão nas dependências do hofburg, eu disse que é um complexo, não disse? cuja entrada principal dá de cara com a graben, elegante rua só para pedestres com sua pestsäule relembrando os estragos da peste negra, e mais à frente num beco à esquerda avistamos a peterskirche no fundo com seu altar magnífico, prato cheio pra mim, não tão religioso ou católico, mas fanático pela arquitetura e arte das igrejas e catedrais, entro em todas, acendo velas e raramente pago, pois a igreja católica já tem dinheiro e posses suficientes, e me deu vontade de beber um tradicional melange, a versão vienense do capuccino só que melhor, pois tem mais café e menos leite, quando entrei numa ruela à direita, passei pela trzesniewski e cheguei no icônico café hawelka, reduto de intelectuais e artistas de época com sua tosqueira, jornais pendurados, sofás puidos e garçons do período cenozóico, mas o café ainda é muito bom, e um pouco mais a frente, já voltando por dentro do hofburg, segui pelo volkspark em direção a rathaus, a mais bonita prefeitura da europa, na humilde opinião deste escriba, logo em frente ao burgtheater, que seria palco de uma noite memorável da minha existência, mas isso é assunto pra outra crônica, e ao lado do landtmann café, tradicionalíssimo local frequentado por sumidades como freud e tantos luminares, que certamente almoçavam no rathaus keller, restaurante no térreo da prefeitura servindo até ontem um schnitzel de chorar me dando energia para seguir caminhando até o museum quartier, o quarteirão dos museus, cujo acesso se dá cortando a praça onde ficam o museu de história natural e o de história da arte, ambos idênticos, um espelhando o outro com a estátua de maria teresa encravada no meio, e como vocês já perceberam, o centro histórico é rico culturalmente, fica dentro da ringstraße, as avenidas formando um anel que substituiu as antigas muralhas medievais a pouco mais de cento e cinquenta anos, com straßenbahnen, os bondinhos circulando nos dois sentidos passando pelo musikverein, sede da filarmônica e templo da música clássica, a konzerthaus, com uma das melhores acústicas do mundo, e logo ali atravessando a rua avistei a karlsplatz onde fica a karlskirche de estilo samba do crioulo doido misturando barroco e toques de rococó, grego, romano e oriental, mas que também abriga minha amada tu wien e um pouco mais a frente chegamos no naschmarkt, mercado aberto da cidade onde se come e bebe muito bem e não é tão caro, ótimo lugar aos sábados pra comprar bugigangas e coisas inúteis que você jamais usará no mercado das pulgas, vulgo flohmarkt, e se suas pernas não estiverem em petição de miséria, podes seguir pela schwarzenbergerplatz (duvido que consiga falar essa palavra após comer um biscoito água e sal, o nosso creme cracker, sem cuspir) olhando para o monumento aos russos que libertaram a áustria do jugo nazista e que hoje tem um muro atrás pintado nas cores azul e amarelo em homenagem à resistência da ucrânia, até chegar no schloß belvedere onde o beijo do gustav klimt te agradecerá, praça essa onde trabalhei ao lado por três anos, mas agora minha vida é outra, estou casado e com dois filhos, um trabalho a oitenta quilometros de casa, mas vou de carro ouvindo podcasts ou músicas, feliz e realizado, só que te contarei essa parte da minha história num livro a sair em breve.
p.s. o danúbio não é azul, passa longe do centro e é uma decepção pra quem espera vê-lo cortando o centro de viena, mas por acaso moro ao lado dele e se você quiser apreciá-lo em toda sua imponência e resplendor, recomendo pular num barco e seguir direto até budapeste onde o famoso rio divide a cidade ao meio entre buda e peste.
Minhas crônicas são um exercício literário livre, sem temas específicos. Espero que gostem.
"O que aconteceu com sua forma de escrever? Estava sóbrio? "
Liza Clementino