Foi em 14 de julho de 2005 que Ela desembarcou do moderno e imponente trem-bala alemão na Westbahnhof vindo de Düsseldorf. O verão vienense não dava trégua e água era artigo essencial.
Em BH tínhamos a mesma amiga em comum que nos ignorou solenemente em ocasiões diferentes. Quando veio me visitar no ano anterior, mesmo após muita diversão, causos, gargalhadas e biritas, a despedida foi fria e distante. Não me sentia mais conectado a ela, seus valores e objetivos. Sequer me levantei da cama para me despedir e levá-la ao aeroporto estava fora de cogitação. Assim, aquela guerreira de longas datas, noitadas, baladas e loucuras saia do meu raio de ação e interesse. Para sempre.
Enquanto isso, Ela fazia contato com a mesma menina, que vivia em Bruxelas, para um óbvio e natural encontro. Acontece que a mui amiga tinha se enamorado de um inglês numas termas em Budapeste e a informou secamente que estaria em Londres nos próximos cinco finais de semana. Portanto, sem tempo para encontrar uma fiel e saudosa escudeira. Até hoje não entendemos essa recusa fria e inexplicável.
Nossos destinos convergem ali, pois após a esnobada da recente ex-amiga, Ela decidiu então me visitar. Em Mönchengladbach, foi até o balcão da Deutsche Bahn, a famosa DB, companhia ferroviária da Alemanha, e disse ao atendente em alto e bom som: “Toca pra Viena!”. O alemão incrédulo levantou os olhos entre os óculos e as sobrancelhas arqueadas respondendo “Wie bitte?!”, ou “Como assim?” em idioma tedesco. Como Ela começava a se arriscar naquela língua complicada, pediu desculpas em inglês e solicitou uma passagem só de ida para a capital austríaca. A volta seria de avião, pois.
Ela dizia que jamais se casaria, não acreditava no matrimônio, na monogamia, etc., mas se caso um dia entrasse num cartório para assinar aquele livro perante o tabelião e alegres testemunhas, seu marido se chamaria Pedro. Seu número da sorte era e ainda é o 14, o dia de sua chegada. Pra completar, eu usava uma T-shirt azul marinho com o numeral #14 estampado no lado esquerdo do meu peito. Acredite se quiser.
Às 19:30 na Westbahnhof, ela chegou, nos cumprimentamos felizes, peguei as malas e rumamos para o meu apartamento. Na verdade, uma república onde vivia com outros três brasileiros: Rodrigão, o Mancebo, Don Dimas, velho chapa dos tempos em Berlin, e o Murilão. Este último estava viajando, outra coincidência providencial pois poderíamos ficar em seu quarto, que era maior, e não no meu, menor e com uma cama de casal. Não poderia convidá-la de cara pra dormir ali, juntinho, logo na primeira noite. Coloquei dois colchões no quarto do Murilão, mantendo uma distância de segurança, e ali seria o “meu quarto”. Pelo menos na primeira noite.
Sem saber se Ela estava solteira ou comprometida, pensei em várias estratégias de conquista, até mesmo levar flores pra estação, mas seria patético e logo revelaria minhas intenções. Decidi ser eu mesmo agindo da forma mais natural possível. Se Ela gostasse de mim do meu jeito, estaria feito. Se não, paciência. Não conseguiria ficar atuando e representando quem não sou por muito tempo.
Antes de largar as coisas na república, carinhosamente chamada de Casa do Espanto, e sair pra bater perna pela cidade, Ela me pediu um abraço de homem brasileiro pois estava a algumas semanas convivendo com os frios alemães. Pele com pele, calor humano, cheiros, troca de energia e frequências sintonizadas. Foi ali que nos conectamos para nunca mais soltar.
Eu havia comprado entradas para uma performance do Tanzfestival no sábado 16, o festival de dança que acontece todo ano no verão e estava em seu primeiro dia naquela quente quinta-feira 14. Lá pelas tantas, em frente à prefeitura, avistei o Burgtheater, o mais tradicional teatro de Viena, da época do Imperador Francisco José I, o Franz Joseph. Sugeri entrar pra ver o belo e clássico interior, tapetes vermelhos, lustres enormes, candelabros a meia luz e toda aquela pompa das pessoas de fraque e longos. Fomos subindo até entrar num dos camarotes, pois queria lhe mostrar o teatro por dentro, o palco, as cortinas e o público se acomodando nas confortáveis poltronas de veludo.
Flanando por Viena em frente ao Hofburg antes de entrar no Burgtheater (arquivo pessoal, Jul/2005)
Como num passe de mágica, um sino tocou, alguém fechou as cortinas do camarote, as luzes foram se apagando devagarinho e o espetáculo começou. Sem saber, entramos no teatro momentos antes do início da apresentação. Na nossa frente havia duas senhoras nos assentos próximos à beirada do camarote e dois bancos vazios logo atrás. Falei pra gente se sentar ali e se alguém chegasse, iríamos embora. Ninguém apareceu e assistimos de graça ao Balé da Ópera Nacional de Paris cujos ingressos na première do festival eram caríssimos. Eu como estudante de Doutorado não tinha condições de pagar, mas o cara lá de cima me deu uma bela mão na minha estratégia de conquista.
Rezamos pra ninguém nos cobrar na saída e rachando de rir, fomos comer pedaços de pizza em frente à Ópera. Chegando em casa, ela foi tomar banho. Depois tomei o meu e quando entrei no quarto, os colchões estavam colados um no outro. Pensei na hora “Caixaaa! É de caixa que ela gosta!”. Estava tudo muito melhor do que o esperado. Minha ansiedade na lua, mas tentando parecer natural e relaxado.
Na hora de dormir, Ela olha pra mim e pergunta: “Pedrinho, você tem certeza? Não quero que você se apaixone por mim, hein!”. Respondi dizendo que tinha certeza absoluta, e que era Ela quem sairia de Viena apaixonada por mim. O resto, como se diz, é história.
No dia seguinte acordamos já como um casal de namorados de longa data. De sexta até segunda de manhã, quando Ela quase perdeu o voo de volta pra Colônia, o tempo parou. E na mesma tarde eu quase morri num desastre aéreo durante uma tempestade voando a trabalho de Viena para Munique num avião pequeno. Reclamei com Deus ainda lá no alto, em meio a relâmpagos numa aeronave pulando mais do que cavalo bravo em rodeio. Entre uma reza e outra dizia a Ele que “logo agora, quando encontrei a mulher da minha Vida, você quer me derrubar?”. Felizmente, cheguei são e salvo ao destino final. Já taxiando a pista, o sádico piloto nos informa que “estivemos bem próximos do limite de segurança da aeronave”.
Há exatos 20 anos esse beijo mudou tudo. Nos casamos após cinco meses, temos dois meninos lindos, espertos e inteligentes, vivemos com conforto e segurança, fazemos tudo que queremos e só podemos agradecer todo santo dia pela Vida que temos e construímos juntos.
A melhor estratégia é seguir seu coração e confiar nos seus instintos. E o Universo que se vire para se alinhar a eles.
Te amo, Amore mio!
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"Linda história! Menina ousada , segura e decidida como tem que ser. Das minhas. Ah e o teatro? Lindíssimo. Mas paguei pra assistir Rigoletto em 1995 com a Fernanda Lippi."
Liza Rhênia Clementêna
Que linda historia! Muitas felicidades pelos 20 anos!